sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Das Impossibilidades do Autorretrato


CRO, Flávio. Das Impossibilidades do Autorretrato III, 2012, projeção de uma montagem digital de autorretratos de diferentes épocas.

Cada foto polaroide é vista ao mesmo tempo como um elemento do conjunto e como uma imagem autônoma, e a relação entre a imagem global e as imagens fragmentárias não é de simples soma, de encaixe unitário e homogêneo. Ao contrário, tudo é um problema de desenquadramento, de defasagem, de descontinuidade. Por exemplo, os diversos polaroides que compõem a representação do corpo de um modelo não foram feitos do mesmo ângulo ou da mesma distância, ou da mesma posição etc. E essa variação perpétua de pontos de vista, ao introduzirem uma pluralidade de espaços (e até de ações) na obra, introduz simultaneamente o tempo no dispositivo. Se existirem 180 fotos de polaroide (15 x 12) em Autorretrato com Dominique, isso quer dizer que existem 180 tomadas distintas, portanto 180 momentos de tempo diferentes no quadro, com todos os efeitos perceptivos que isso pode provocar no espectador. Eis o que este último trabalha: a instalação posiciona-o de tal maneira que ele não pode mais apreender a obra de maneira unitária: ele já não ocupa a posição de domínio; a unicidade de tempo e de lugar da percepção da obra, que fundamentava essa posição, não é mais possível, estourou, como numa obra cubista; e o espectador flutua, não sabendo mais o que fazer e para onde olhar. Efeito-escultura.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Papirus: São Paulo, 2011, p. 296.


















CRO, Flávio. Das Impossibilidades do Autorretrato II, 2012, projeção de um ensaio digital de autorretratos no espelho.


E esse esforço sem fim de representação de si enquanto está se representando só resulta finalmente num emaranhado de linhas intercaladas.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Papirus: São Paulo, 2011, p. 125.


A série de ensaios Impossibilidades foi apresentada durante a II semana da fotografia de Belo Horizonte no galpão 104. Lidando com essa problemática do autorretrato, elaborei três propostas que seriam projetadas durante a mostra, cada uma tentando pensar fotograficamente a questão.




II Semana da Fotografia – Galpão 104 — Praça da Estação. Fotografia: Robim Martins.


















CRO, Flávio. Das Impossibilidades do Autorretrato I, 2012, projeção de um ensaio digital de autorretratos de sombra.

[...] a pintura nasceu do fato de se "ter começado por delimitar o contorno da sombra humana"

Finalmente, essa figura de sombra projetada, puro índice, que só existe na presença de seu referente, deverá ainda ser duplicada por um desenho que virá fixá-la por decalque direto.

Por outro lado, o próprio processo de surgimento da sombra é instantâneo, ocorre por inteiro de uma só vez sob o impulso luminoso (enquanto a projeção de pó era progressiva e fazia-se por parte). Esse jogo de modificações nos aproxima cada vez mais do dispositivo fotográfico [...]

Essa versão pelo menos introduz duas modificações notáveis com relação à narrativa precedente: em primeiro lugar, introduz a referência a Deus e à criação do homem como modelo original da representação; em segundo lugar, e referindo-se ao próprio texto de Plínio, transforma o retrato de sombra do outro em autorretrato de sombra. 

Tomar como modelo da representação a Criação do homem por Deus é remeter, [...] à imemorialidade mítica de qualquer origem [...] e é igualmente colocar Deus como Grande Pintor Original. Por extensão, é tornar todo pintor não justamente um deus, um creator ex nihilo, mas um sujeito que já foi criado e que só faz imitar, copiar, reproduzir (imperfeitamente) a obra e o gesto do Grande Genitor [...] O índice não é mais o desenho, o signo pictural, mas é próprio ato de pintar concebido como decalque e como memória, como escala e retomada da Criação divina, da qual procede realmente (na ordem da crença), pois o pintor é uma criatura de Deus e opera com o que Este lhe forneceu.


[...] a fábula situa explicitamente a própria origem da pintura no narcisismo [...] o que não pode deixar de remeter [...] a esse autorretrato absolutamente original que foi a criação do homem à própria imagem de seu Criador [...]


Sabe-se que qualquer autorretrato condensa na mesma pessoa duas instâncias bem distintas do processo de representação: o objeto a ser pintado e o sujeito que pinta. 


Vemos portanto que o que Vassari diz ser a Origem da pintura é de fato a história de uma impossibilidade figurativa.


De fato, apenas uma coisa poderia tornar possível a condensação instâncias do autorretrato de sombra: seria que a representação se realizasse por inteiro de uma só vez [...]

[...] não existe praticamente um único fotógrafo importante que não tenha voltado contra ele sua caixinha negra -, a representação de si através da foto de sua sombra constitui com certeza uma das três ou quatro grandes modalidades do "fo(au)torretrato" - ao lado do espelho, do disparador automático e do disparador de efeito retardado.


O narcisismo indiciário do autorretrato só pode se realizar teoricamente na petrificação fotográfica. 



DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Papirus: São Paulo, 2011, p. 117 à 128 (fragmentos).

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